
Família multiespécie ganha espaço e muda a forma como brasileiros cuidam de seus pets
Há nove anos, a publicitária paulistana Lívia Lira se viu em um contexto delicado. O pai havia sofrido um grave acidente e ela, para se distrair e conseguir lidar com as dificuldades de uma rotina tensa e desgastante, decidiu adotar um cachorro. A companhia de um bichinho faria bem, pensou. “Eu estava muito mal, senti que precisava sair daquela situação. Foi aí que o Tom apareceu”, conta.
Tom chegou com vários problemas: infecção no sangue, carrapatos, pulgas e problemas na visão. Desde então, Lívia já faz as contas do mês pensando que parte do salário será destinado ao bem-estar de Tom. Atualmente, a publicitária gasta cerca de R$ 2 mil mensais com plano de saúde, creche em horário integral, motorista para levar o animal a esse espaço especializado, medicamentos e uma ração específica, já que o cão tem alergia às rações comuns.
A creche oferece treinamento, cuidados especiais e uma hora de passeio no parque. Lívia recebe relatórios com fotos e vídeos para acompanhar a rotina de Tom. Segundo ela, o pet “tem amiguinhos e toda uma vida social”. Lívia Lira se separou em 2024. Agora, divide o apartamento com Tom e, muitas vezes, precisa adequar seus horários às necessidades do animal. “Percebo que o pet acaba entrando na nossa vida como um filho que demanda dedicação, atenção e cuidados”, conta.
A relação de Lívia Lira com seu cachorro reflete o vínculo que muitos brasileiros têm com seus pets. No país, os animais de estimação, principalmente cães e gatos, viraram parte da família. Em julho de 2024, dados da Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (Abinpet) e o Instituto Pet Brasil mostraram que o país possui 160,9 milhões de pets, entre cães, gatos, aves, répteis, peixes e pequenos mamíferos. Cães (62,2 milhões) ainda são maioria e os felinos chegam a 30,8 milhões.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a média é de 1,8 pet por residência. E isso se reflete no bolso. Uma pesquisa da Serasa, em parceria com o Instituto Opinion Box, realizada entre 27 de agosto e 8 de setembro de 2025, com 1.618 entrevistas online em todo o país, revelou que 65% dos tutores estão dispostos a gastar o que for preciso com seus bichinhos. Mais da metade (52%), inclusive, já abriu mão de alguma necessidade pessoal para priorizar o bem-estar do pet.
Esses gastos se tornaram parte fixa do orçamento doméstico, como é o caso da Lívia Lira. O estudo também revela que 56% dos tutores desembolsam até R$ 300 por mês com seus pets, enquanto 31% chegam a dedicar entre 6% e 10% de sua renda para eles. E esse cuidado, muitas vezes, é compartilhado: 40% dizem dividir despesas com outras pessoas da família ou amigos.
Afinal, por que tantas pessoas dizem não medir esforços quando o assunto é o bem-estar do pet? Para a publicitária, o primeiro motivo é mais óbvio: ser responsável por um animal que não consegue se virar sozinho. No entanto, de acordo com Lívia, há também um fator geracional.
Aqueles que nasceram a partir dos anos 1980, especialmente os millennials, como são chamadas as pessoas nascidas até meados dos anos 1990, foram criados para um mundo que já não existe: ouviram que bastava crescer, estudar e ter um diploma. “Só que o jogo mudou. Os pets são os filhos que muitas pessoas conseguem ter (por questões financeiras)”, afirma.
Ainda conforme com a pesquisa, o investimento não é visto como sacrifício, mas como retribuição: 82% dos entrevistados acreditam que os benefícios emocionais de ter um animal de estimação superam qualquer gasto. “Tenho uma relação de cumplicidade com o Tom. Eu me adapto de acordo com as necessidades dele, mas ele também me faz ter mais disciplina. Eu não abro mão nada por ele, mas também não deixo que nada falte para ele. Se for faltar para ele, que falte para mim antes”, comenta Lívia Lira.
Família multiespécie
Bruno Divino é médico veterinário e diretor do Hospital Veterinário UniArnaldo, em Belo Horizonte. O especialista ressalta que tem visto, principalmente após a pandemia, uma mudança de comportamento dos tutores em relação aos pets.
As transformações foram tão grandes a ponto de o conceito de família multiespécie, aquela formada pelo núcleo humano em convivência compartilhada com seus animais, ter se popularizado nos últimos anos e ser tema do Projeto de Lei 179/23, que prevê uma série de direitos para os pets de estimação, além de regulamentar o conceito de família multiespécie.
O projeto está em análise na Câmara dos Deputados. “Os animais passaram a ser membros da família. Vejo como uma evolução natural, até porque a vida está mais corrida, as cidades mais concentradas e as relações interpessoais cada dia mais difíceis”, argumenta Bruno Divino.
Ele pondera que, salvo casos específicos de doenças crônicas, R$ 300, em média, é um valor considerado suficiente para garantir a qualidade de vida aos pets. Segundo Divino, os gastos podem aumentar muito quando a parte preventiva é deixada de lado. “O tutor consegue manter o animal por um período muito longo sem despesas extras usando o conceito de guarda responsável”, explica o médico veterinário.
“Dieta adequada, que pode reduzir a chance de doenças mais graves, como tumores e problemas cardíacos, cumprir o plano vacinal e brincar com o pet, porque ele precisa gastar a energia que tem. As interações são muito importantes do ponto de vista comportamental”, completa Divino.
O especialista indica serviços públicos de castração de cães e gatos existentes nos municípios, hospitais de faculdades de veterinária, que possuem atendimentos gratuitos ou muito mais baratos que opções particulares, e o Complexo Público Veterinário de Belo Horizonte, que oferece atendimento gratuito de pequena, média e alta complexidades. Além disso, Bruno Divino diz que o check-up anual com médicos veterinários é fundamental para identificar precocemente as doenças.
Tutor e pet: relação tem um limite saudável
Sim, existe um limite saudável na relação entre tutores e pets, que pode gerar, em casos extremos, apego exagerado e dependência emocional do humano com o animal. É o que afirma o psicólogo Jailton Souza. O apego ao pet é natural e benéfico, fortalece o vínculo afetivo, estimula comportamentos de cuidado e proporciona bem-estar mútuo. “O contato com o animal libera ocitocina, o chamado ‘hormônio do afeto’, que está associado a sentimentos de segurança e prazer social”, explica Souza.
No entanto, quando essa relação ultrapassa certos limites e o tutor passa a substituir interações humanas por vínculos exclusivamente com o animal, isso pode ser entendido, do ponto de vista comportamental, como um comportamento de esquiva: o animal funciona como reforço para evitar sensações de solidão, rejeição ou insegurança pessoal.
“Quando o tutor centraliza toda a afetividade e o sentido de vida no animal, negligenciando outras áreas (relações, trabalho, lazer), isso pode sinalizar uma carência afetiva ou déficit de habilidades sociais. Não se trata de ‘culpa’ ou ‘patologia’ em si, mas de um indício de que o vínculo afetivo está sendo usado como mecanismo compensatório para lidar com frustrações emocionais”, argumenta o psicólogo Jailton Souza.
Fonte: O Tempo