Colônia de Pescadores celebra centenário da entrega de oferendas – Simões Filho Fm
por Redação

Colônia de Pescadores celebra centenário da entrega de oferendas


 
 
 

Único evento do calendário religioso do verão baiano dedicado integralmente a um orixá, sem qualquer traço cristão, a Festa de Iemanjá no Rio Vermelho tem outras peculiaridades. Em sua origem, a charmosa tradição de preencher um balaio com presentes à Rainha das Águas compartilhava a data e o local com a Festa de Nossa Senhora de Sant’Anna.  Por conta dessa gênese, poderia ter sido uma festa em louvor a Nanã, correlata a essa santa católica no sincretismo.

Antes da fama, o cortejo foi feito por alguns anos em Monte Serrat. E, para completar, no próximo dia 2 de fevereiro, quando a Colônia de Pescadores do Rio Vermelho colocar no mar o balaio pelo centésimo ano seguido, de acordo com a entidade, não há certeza de que essa contagem esteja certa.

“Não existe nada que comprove se foi em 1923 ou 1924. Não existe registro na Colônia, não existe notícia de jornal nem documentos. Nem mesmo através das histórias orais”, afirma a antropóloga Cristiane Sobrinho, uma das responsáveis pelo laudo técnico que embasou a decretação da Festa em 2020 como Patrimônio Cultural Imaterial de Salvador.

O processo, que ainda não foi concluído, é importante para que a Festa de Iemanjá não sofra alterações fundamentais no futuro em função de perseguição religiosa por autoridades públicas, conforme explica a antropóloga.

Se o laudo não foi conclusivo quanto à data da primeira festa, pesquisadores considerados referenciais pela academia, como Edilece Couto e Ubaldo Marques Porto Filho, apontam 1924 como o provável ano em que os pescadores da área se reuniram pela primeira vez para oferecer os presentes a Iemanjá.

Uma forma de pedir à Mãe D’Água que ela entregasse ao mar, em abundância, os seus filhos peixes num período em que os resultados da pescaria eram escassos. Nesse momento, o ritual religioso dos pescadores era ainda coadjuvante dos eventos promovidos pela classe média branca que mantinha casas de veraneio no Rio Vermelho, então uma vila desconectada da cidade do Salvador.

As famílias abastadas chegavam em dezembro para comemorar o Natal e continuavam os festejos com o Dia de Reis, festas dedicadas aos santos católicos, incluindo o Bando Anunciador. Criado na segunda metade do século 19, o bando tinha a finalidade de proclamar as atividades em homenagem à santa na Paróquia de Sant’Ana, na igreja hoje desativada que fica em frente ao Acarajé de Dinha.

Os pescadores frequentavam a missa e participavam dos festejos de Sant’anna, mas ainda na década de 1930 houve uma cisão entre a igreja e a colônia, para a qual há duas versões. Na página Cultura Todo Dia, mantida pela Fundação Gregório de Mattos, consta a história de que durante uma homilia, o pároco de Sant’Ana teria chamado os pescadores de ignorantes, por reverenciarem a imagem de uma mulher com rabo de peixe. O que teria causado a separação entre o culto a Iemanjá e o louvor a Sant’Ana.

O livro Tempo de Festas, de Edilece Couto, que analisa as homenagens a Nossa Senhora da Conceição e Nossa Senhora de Sant’Ana entre 1860-1940, por sua vez, aponta uma taxa que a paróquia impôs aos pescadores como o motivo da separação.  Os dois eventos que aconteciam em data móvel no início de fevereiro, quando os veranistas ainda estavam no Rio Vermelho, tomam rumos diferentes.

Na década de 40, a Igreja Católica transferiria a festa de Sant’Ana para 26 de julho, que efetivamente é o dia da santa no calendário católico. E a Festa de Iemanjá é instituída no dia 2 de fevereiro, que no calendário católico corresponde ao Dia de Nossa Senhora das Candeias ou da Luz, correspondente a Oxum no sincretismo.

O culto a uma divindade feminina que é soberana nas águas está presente em diversas culturas, com algumas diferenças. Rússia e Ucrânia, atualmente em guerra, cultuam a sereia Russalka. A mitologia grega trouxe as sereias e a cultura do Rio Amazonas tem a Iara. E Iemanjá é uma deusa da nação Egbé.

 “Essa entrega de presentes e a ideia de uma Grande Mãe que habita as águas é uma coisa mais antiga”, pontua o historiador e antropólogo Marlon Marcos Passos, professor da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (Unilab).

A primeira tentativa de oferecer presentes a Iemanjá não trouxe os resultados esperados e os peixes continuaram escassos.

 Os pescadores procuraram, então, a Mãe de Santo Julia Bogum, que ensinou a maneira correta de se fazer a oferenda à Mãe D’Água, sob os preceitos africanos. Os pescadores compraram um balaio grande, uma talha de barro, flores e fitas azuis e brancas, as cores da orixá.

 Representação

Ao iniciar a tradição de oferecer presentes à Rainha das Águas, os pescadores do Rio Vermelho colocaram sobre uma pedra a imagem de uma sereia de pele clara, até porque possivelmente não havia disponibilidade de uma imagem negra no Brasil do início do século 20. Mas, com o passar dos anos, a representação de Iemanjá de olhos claros passou a ser questionada.

“De acordo com as tradições africanas e afro-brasileiras, ela é negra, com corpo de medidas fartas, especialmente os seios”, afirma Cleidiana Ramos, jornalista e doutora em Antropologia, autora do livro Inventário das Festas e Eventos na Baía de Todos-os-Santos.

O professor Marlon Marcos, que mantém em casa versões branca e negra de Iemanjá, concorda que a representação mais adequada é a da pele escura, mas não considera a outra versão ofensiva.

A parte sagrada da Festa começa na madrugada do dia dois de fevereiro com a oferta de presentes a Oxum. Na alvorada, as oferendas são levadas ao barracão em frente à Colônia dos Pescadores, de onde saem no fim da tarde para serem levados até o alto mar.

Filho de Iemanjá, Marlon Marcos explica que a parte da festa religiosa em si se limita a esse ritual. Mas ele não considera igualmente que os festejos que se espalham por todo o bairro sejam inapropriados.  “O filósofo Émile Durkheim separava o profano do sagrado. No universo do candomblé, muita coisa que a gente pode entender como profana tem a ver com o ritual”, explica.

Passos declara, por exemplo, que beber muito, às vezes, tem a ver com a liturgia do Candomblé.  “É uma outra dinâmica, uma outra compreensão da espiritualidade”, afirma o professor.

 Não à toa, devotos de Iemanjá que querem seus presentes no balaio que vai ser entregue à Rainha das Águas, adotaram o costume de dar garrafas de bebidas alcoólicas aos marujos que levam o balaio ao alto-mar.

Projeção

O culto dos pescadores soteropolitanos a Iemanjá não é exclusivo da Colônia do Rio Vermelho. Sempre houve entrega de presentes também em Itapuã, na Pituba e em Monte Serrat. Mas nenhuma conseguiu a projeção da Festa do Rio Vermelho, que acabou se tornando, até por questões políticas, a Festa de Iemanjá.

“Em um país intolerante como esse, é importante destacar o nome do orixá”, pontua Marlon, assinalando que a festa atrai todos os públicos. “Há pessoas que fazem suas oferendas pensando em Nossa Senhora”, exemplifica.

 Mas a sociedade baiana de classe média só começou a aceitar a tradição, que eventualmente um dia foi tratada como ignorância de pescadores, a partir dos anos 1940 e 50, quando o ritual chamou atenção de intelectuais forasteiros como o antropólogo e fotógrafo Pierre Verger e o sociólogo Roger Bastide, ambos franceses, e o jornalista sergipano Odorico Tavares. O etnólogo baiano Edison Carneiro, por sua vez, considerava que a festa não era um evento tradicional africano, mas uma adaptação afro-brasileira.

Antes disso, por exemplo, os pescadores do Rio Vermelho que tinham o seu ritual marginalizado pela elite veranista e pelos meios de comunicação da época, chegaram a realizar a oferenda em Monte Serrat e voltar para casa no fim do dia para o samba, como conta Cleidiana Ramos: “Monte Serrat era, por excelência, o local de culto à Mãe D’Água nas primeiras décadas do século 20. Jorge Amado inclusive usa essa referência do culto em Monte Serrat em Mar Morto”.

Referência

Na década de 70, com o fim das missas católicas em louvor a Nossa Senhora da Luz, Iemanjá assumiu protagonismo total no Dois de Fevereiro e se tornou a grande referência para pescadores de diferentes gerações.

Quando começou a pescar, aos 20 anos, o são-felipense Jorge Oliveira Mota, 71 anos, o Branquinho, acostumou-se a fazer viagens de dois ou três dias para Arembepe e Morro de São Paulo, em busca de peixes.

Mas na década de 90 houve um momento em que demorou muito mais tempo para voltar para casa. Branquinho ficou à deriva 18 dias quando enfrentou uma tempestade marítima nas proximidades do Morro de São Paulo e agradece à divindidade por ter voltado. “Eu estou vivo graças a Deus, primeiramente, e a ela. Eu vivo em cima das águas, então tenho que acreditar nela”, afirma o pescador.

Quando Jorge já tinha essa história para contar aos amigos nas conversas em frente à Colônia dos Pescadores, que se repetem até hoje, Alessandra Fernandes tinha 11 anos e estava querendo começar a pescar para poder ajudar nas despesas de casa depois que o pai abandonou a família.

“Eu ajudava as pessoas na colônia e eles me davam uns peixinhos, mas eu queria pescar”, afirma Alessandra, conhecida como Dandinha, que hoje tem 41 anos.

Dandinha tornou-se a única mulher entre os mais de mil pescadores cadastrados na Colônia dos Pescadores Z1, que abrange a pesca da Boca do Rio ao Montserrat. A única mulher a pescar em alto-mar. “Eu cheguei a pescar 100 quilos de peixe em um dia”, afirma.

Mas desde 2020 Dandinha não encosta na colônia. O motivo seriam episódios de machismo e misoginia, diz ela, sem dar detalhes sobre o que teria causado seu afastamento.

Enquanto os pescadores se reúnem na varanda da colônia e observam a construção do barracão para o Dois de Fevereiro, Dandinha se mantém a metros de distância para dar entrevista e fazer fotografias. No WhatsApp, a imagem de seu número traz um pedido por igualdade de gênero entre comunidades pesqueiras.

Na Praia da Paciência, Dandinha ainda espera que a justiça seja feita e que as mulheres tenham os mesmos direitos dos homens, até para buscar a sobrevivência.

 “Eu criei um projeto para pescar com mulheres, mas preciso de incentivo”, afirma. Mas mesmo assim ela planeja ir ao mar no Dois de Fevereiro e, mesmo distante dos pescadores, render homenagem a Iemanjá.

 

Autor: Gilson Jorge


 
 
 

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